ÉPOCA –
Em 2006, o senhor escreveu um trabalho em defesa do semipresidencialismo. E,
recentemente, voltou ao tema em conferências acadêmicas. Por qual razão?
Luís
Roberto Barroso – Essa proposta de reforma política
para o Brasil foi um trabalho acadêmico, feito em equipe, sem encomenda de
ninguém. Eram ideias para o Brasil. No referido estudo, apresentei três
sugestões. A primeira delas dizia respeito ao sistema de governo, o
semipresidencialismo. A segunda, ao sistema partidário, sobre voto distrital
misto, e, finalmente, em relação à cláusula de barreira e ou a proibição de
coligações em eleições proporcionais. Eu achava que essas três transformações
produziriam um impacto institucional extremamente positivo para o país.
ÉPOCA
– O senhor imaginava, ao formular sua proposta, que dez anos depois estaríamos
numa crise como a atual, em que o governo está sem apoio popular e parlamentar?
Barroso
– A
história do presidencialismo na América Latina é a crônica de uma crise
anunciada. Eu não era capaz de prever a data exata – minha bola de cristal
estava meio embaçada –, mas não tinha dúvida de que esse dia chegaria. Basta
olhar para trás, de Deodoro da Fonseca aos dias de hoje, e contemplar a dura
realidade: autoritarismo, cooptação fisiológica ou ingovernabilidade. Assim é,
porque sempre foi.
ÉPOCA
– Ainda conserva essas opiniões sobre o presidencialismo, especialmente agora
nesta crise política?
Barroso
– Sim.
Minha proposta foi escrita em 2006 para vigorar oito anos depois, de modo a não
interferir com nenhum interesse político imediato. Ela teria entrado em vigor
em 2014 e talvez nos tivesse poupado de alguns dissabores deste momento. Veja:
eu não sou comentarista político. Eu antes era um acadêmico e agora sou
ministro do STF. Minhas preocupações não estão ligadas à política conjuntural,
mas à defesa e ao aprimoramento das instituições. Acho que precisamos combater
as vicissitudes do modelo político brasileiro, que vão do excesso de poderes do
Executivo ao descolamento entre a classe política e a sociedade civil. Esse era
meu objetivo na época. Se esse é ou não o caminho para enfrentar a crise atual,
não é meu papel dizer.
ÉPOCA
– Que vantagens vê no semipresidencialismo?
Barroso – O semipresidencialismo combina
características do presidencialismo e do parlamentarismo. Mas não é uma
criatura híbrida, sem identidade própria. Ele tem sido praticado com sucesso em
diferentes países, inclusive França e Portugal. É uma fórmula bem melhor do que
o hiperpresidencialismo latino-americano, que é uma usina de problemas, que se
estendem do autoritarismo à ingovernabilidade.
ÉPOCA – Por que acha que o
semipresidencialismo poderia resolver os problemas de governabilidade do Brasil?
Barroso
– A
primeira razão é que o semipresidencialismo permite a substituição
institucional e sem trauma de governos que perderam o lastro de sustentação
política. O grande problema do presidencialismo é que o presidente só pode ser
removido legitimamente em caso de crime de responsabilidade. Trata-se de um
procedimento complexo e traumático, como bem sabemos. No semipresidencialismo,
o governo pode ser destituído por simples voto de desconfiança, se tiver
perdido apoio popular e parlamentar. No semipresidencialismo, o presidente,
eleito por voto direto, funciona como estadista e fiador das instituições. Seu
papel, embora importante, é limitado, o que minimiza seu desgaste. O
primeiro-ministro, por sua vez, fica no front mais inóspito da disputa política
e das transformações sociais, sujeito a embates e turbulências. Em caso de
perda de sustentação, ele cai e é substituído por outro, com apoio da maioria.
Uma válvula de segurança, quanto a isso, é que a destituição somente pode se
dar se já houver um nome com suporte majoritário. Isso dá maior relevo ao papel
do Legislativo, que não poderá se ocupar apenas da crítica, mas deverá
participar também da construção do governo.
ÉPOCA
– Considera viável uma mudança de sistema de governo, quando medidas simples
para melhorar a governabilidade – como a cláusula de barreira e o fim das
coligações proporcionais – não são aprovadas no Congresso?
Barroso
– Em
meados do ano passado, houve uma conferência na Universidade Harvard, nos
Estados Unidos, na qual se discutiram algumas das grandes questões do Brasil.
Em uma de minhas apresentações, eu tabulei as propostas de reforma política dos
três principais partidos políticos nacionais, o PMDB, o PT e o PSDB. Os três
são a favor do fim das coligações em eleições proporcionais e da adoção de
cláusula de barreira ou de desempenho. Tais providências, por si só, já terão
um alto impacto virtuoso sobre o sistema. Portanto, uma agenda minimamente
construtiva resolverá essa questão. O problema é que o país entrou em uma
espiral negativa. Precisamos sair dela. Tenho esperança de que esse debate
volte à agenda do Congresso.
ÉPOCA
– O parlamentarismo já foi rejeitado em plebiscitos anteriormente. Por que um
sistema híbrido teria receptividade na sociedade?
Barroso
– Uma
característica típica do parlamentarismo é a não eleição do chefe de Estado por
voto direto. Ou são monarquias, como o Reino Unido, a Dinamarca ou a Suécia. Ou
são repúblicas, em que a escolha do presidente é por votação indireta, como
Alemanha e Itália. O povo brasileiro não gosta de nenhuma dessas fórmulas. Para
nós, a eleição direta do presidente da República se tornou um símbolo da
democracia e até uma cláusula pétrea. Não há como cogitar em mudar isso. O
semipresidencialismo mantém a eleição direta, mas atenua a concentração de
poderes no presidente. O povo brasileiro nunca se manifestou sobre isso. Ainda
assim, caso viesse a ser aprovada a mudança do modelo, o tema deveria, sim, ser
levado a consulta popular direta, para não haver dúvida quanto a sua
legitimidade.
ÉPOCA – Na França, já houve a
chamada “coabitação”, em que presidente de esquerda é obrigado a conviver com
um primeiro-ministro de direita – e vice-versa – porque seu partido perdeu a
maioria no Parlamento. Uma “coabitação” funcionaria no Brasil?
Barroso
– Quando
as instituições são respeitadas, a política se amolda a elas. Não há qualquer
problema institucional na coabitação. A regra na política democrática é que as
maiorias governem. Nenhum sistema de governo é imune a instabilidades. O que
minimiza o impacto das crises, tanto sobre as pessoas quanto sobre os mercados,
é sua absorção institucional e em curto prazo, de acordo com regras prefixadas.
Não dá para comparar a repercussão da queda de um primeiro-ministro com a de um
presidente.
ÉPOCA
– Como avalia a situação institucional do Brasil, no momento em que se discute
a possibilidade de um impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Barroso
– Atravessamos
uma crise política e econômica de grandes proporções, mas sem abalo
institucional. Superamos os ciclos do atraso, e a sociedade brasileira já não
aceita soluções que não respeitem a legalidade constitucional. Agora:
instituições sempre podem ser aprimoradas. Um modelo semipresidencialista, com
voto distrital misto e cláusula de desempenho, propiciará um sistema político
melhor. O semipresidencialismo reduz o risco de autoritarismos e de crises. O
voto distrital misto barateia a eleição e aproxima o eleitor do eleito. E a
limitação dos partidos impede o balcão de negócios partidário. Precisamos de um
modelo que volte a fomentar o idealismo, o patriotismo e seja capaz de atrair
novos valores para a política. O impeachment, agora, é uma questão política. O
STF, por maioria expressiva, tomou a decisão de manter estritamente as mesmas
regras que valeram para o impeachment do presidente Collor. Regras claras,
preestabelecidas e constantes são garantia do estado democrático de direito.
Agora, tudo dependerá do Congresso.
FONTE: REVISTA ÉPOCA
Nenhum comentário:
Postar um comentário